quarta-feira, 23 de janeiro de 2013


Terça-feira, 22 de Janeiro de 2013


Que fazer neste longo naufrágio?


por Viriato Soromenho Marques*

OS PORTUGUESES estão entregues a si próprios. O mesmo ocorre com os outros europeus, sobretudo os dos países intervencionados. Mas, mesmo os alemães e os finlandeses, embora não sabendo ainda, também não ficarão incólumes às consequências do longo naufrágio em que a União Europeia mergulhou. Resistimos sozinhos na água fria e tumultuosa. Rodeados pelos detritos da catástrofe, pelos corpos dos que já desistiram ou foram vencidos pelas vagas. O comandante e o seu séquito já deixaram a nau. E desta vez nem tiveram a desculpa de 1808, pois agora Portugal já não tem a retaguarda de um império. Os portugueses foram abandonados pelo seu governo e pelas outras instituições que representavam a sua soberania colectiva. Na espuma revolta, abundam páginas soltas de uma Constituição rasgada, resíduos de uma confiança num contrato social que já deve jazer bem no fundo do mar.

O PIOR numa desgraça é a sua ausência de sentido. Os náufragos chegarão à linha da costa e a primeira tarefa será a de estabelecerem os contornos de uma narrativa que lhes ilumine a compreensão do passado e abra pistas para decifrar caminhos que nos permitam merecer o futuro. A monstruosa explicação “moral” de que os povos do Sul da Europa “viveram acima das suas possibilidades” insulta não só a inteligência, como ofende as condições de vida de um povo que jamais atingiu sequer o rendimento médio dos cidadãos da União Europeia. Que sejam governos a dar lições de ética aos seus povos é outra singularidade ignóbil. Quando a presente crise rebentou, em 2008, nos EUA, os governos ocidentais salvaram, sem hesitação, os seus bancos e outros segmentos do sistema financeiro global. A Irlanda, que tinha um registo de finanças públicas muito melhor do que o da Alemanha, afundou-se para resgatar a desmesura dos seus banqueiros. Em Portugal, um governo do PS endividou o país para salvar o BPN, gerido por malfeitores escondidos sob o emblema do PSD. Foi assim em todo o mundo ocidental: as dívidas de um sector financeiro privado foram transferidas para os cidadãos contribuintes. Num golpe de mágica, os vícios privados foram transformados em dívida pública, sob a desculpa do “risco sistémico”, com a excepção do pequeno mas orgulhoso povo islandês, que deixou morrer os seus bancos tóxicos para não perder a sua liberdade. Mas há limites para tudo: não acrescentem à socialização da dívida a externalização da culpa. Não podemos consentir que governos incompetentes queiram também amarrar a nossa alma, depois de nos expropriarem o corpo. A culpa dos gastos inúteis para satisfazer clientelas, a culpa ainda maior por uma União Económica e Monetária imperfeita, armadilhada como uma bomba relógio contra os europeus e as suas poupanças não é dos cidadãos. De Lisboa a Berlim, ela pertence aos governos dos partidos que agora nos querem salvar promovendo, o desemprego, a pobreza e a emigração como boas políticas públicas.

AS INSTITUIÇÕES que nos governam traíram a nossa confiança. Sentimo-nos aturdidos pela deriva, contudo, nunca os europeus estiveram tão unidos, face à imensa tragédia que cresce no horizonte ameaçando engoli-los numa perigosa e desastrosa fragmentação. Mas essa comunidade de destino é ainda invisível para muitos. Temos de (n)os acordar desta espécie de “matrix” ilusória que (n)os adormece. Não foi a unidade europeia que falhou, mas sim este modo de construir a Europa a partir dos Palácios e das Bolsas, com um total desprezo pelos cidadãos, tratando-os como meros consumidores, numa lógica medíocre de pão e circo. Chegou a hora de, como portugueses e europeus, vencermos as barreiras ilusórias das línguas e dos preconceitos. Há um caminho incerto pela frente. Mas é apenas ele que nos separa de sermos empurrados para dentro desse buraco negro que resultaria do colapso da União Europeia.

PS: Agradeço a Maria Filomena Molder e Irene Pimentel, bem como aos colegas hoje reunidos na Universidade Nova de Lisboa, a sugestão do tema para este ensaio.




*Professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, regendo as cadeiras de Filosofia Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea

artigo originalmente publicado na revista Visão a 6/12/2012 

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