sexta-feira, 3 de junho de 2011

Eu também tive um coelho quando era pequena.....

Eu também tive um coelho quando era pequena, tratava-o como um irmão e ele conhecia-me à légua, no dia em que eu percebi que ele ia ser comido pu-lo a fugir. Outra pessoa o comeu, mas não foi festim na nossa mesa. Ele na barriga de outros e eu cheia de pimenta na língua, que eram os castigos de outrora, por isso esta história do Mário de Carvalho me comoveu tanto. Aqui vai um bocadinho... (...)Pois naquela altura saltitava lá por casa um coelhito malhado. Não era um desses coelhos anões, cinzentos e cheios de peneiras, armados em fidalgos, que se vendem agora nos centros comerciais. Não. Era um robusto coelho do campo, muito curioso, de narizito sempre a farejar, grande apreciador de cenouras.
Houve alguém que nos ofereceu aquele coelho, no pressuposto de que o destinaríamos à panela, com batatas e ervas cheirosas. Mas naquela nossa casa não havia ninguém capaz de sacrificar um animal, para mais simpático e dado ao convívio.
De início, ficou numa marquise. Todas as manhãs, quando se abria a porta da marquise vinha cumprimentar-nos, farejando-nos os pés e empinando-se a olhar para nós. Não tardou que circulasse por toda a casa e me fizesse companhia naquelas brincadeiras que demoravam o dia inteiro.
Era um coelho extremamente asseado. Tinha lá o seu sítio de recolhimento e fez questão de nunca deixar noutro lado aquelas bolinhas pretas e redondinhas que os coelhos costumam distribuir.
E bom companheiro que ele era. Tinha imenso jeito para andar nos carrinhos, ajudava a descarrilar o comboio de brinquedo, e admirava, com sinceridade, as maravilhosas obras de engenharia que eu construía com o meu «Meccano».
Eu já deixara de invejar os outros miúdos que tinham cães e gatos nos quintais. Nenhum se comparava ao meu coelho, nem sabia brincar com tanta classe.
Os homens são ingratos. Quando crescem, ainda mais. Imaginem que eu me esqueci completamente do nome do meu coelhinho. Certo é que ele acudia aos chamamentos e vinha de onde estivesse, saltitão, com o tufo peludo do rabito no ar. Eu podia agora improvisar um nome e fazer de conta que o bicho se chamava, por exemplo, «Pinóquio» ou «Lanzudo». Mas não quero inventar nada. Quero contar tudo como era. Esqueci-me do nome, passou-me, pronto!
Mas... um dia comecei a ouvir os adultos a segredar, lá em casa. Desconfiei logo que se tratava do meu coelho, e era mesmo. Um amigo, possuidor duma quinta, tinha-se oferecido para instalar o bicho no campo e os meus pais - com aquele irritante bom senso que compete aos mais crescidos - haviam considerado a proposta interessante. Sempre era melhor para o animal andar em liberdade, ao ar livre, entre arvoredos, na companhia dos seus iguais e das aves de capoeira... E quando eu protestava, com muita força, limitavam-se a abraçar-me e sorrir.
E lá levaram o coelhinho, aproveitando uma distracção minha. O que eu barafustei! Foi um tremendo desgosto. Ao deitar, não quis ouvir histórias de gigantes. Durante toda a noite chorei e exigi a devolução do meu companheiro. Em vão.
Espero que ele tenha sido feliz lá na tal quinta. Ainda hoje, quando vejo um orelhudo malhado a saltitar, pataludo, com os olhos vivos e o nariz sempre em acção, consolo-me sempre com a ideia de que pode ser um dos descendentes daquele saudoso coelhinho da minha infância. E quando contar aos meus netos histórias de gigantes, talvez introduza nos contos as peripécias de um herói orelhudo.


Mário de Carvalho, in Memórias da Infância.
Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, VIII série, n.° l, Dezembro de 1994

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