Gargarito veste o sobretudo, desce as escadas e de repente começa a chover. Dona Alzira aparece à janela com um chapéu de chuva pequenino e diz: Senhor Gargarito, não pode ir sem chapéu-de-chuva! E atira-o desastradamente para cima da cabeça. Gargarito cai no chão desamparadamente e tem novo ataque de tosse. Andrade assoma à janela e diz: Eu não disse? Nem umas escadas aguenta. Chamem uma ambulância. As colegas, em coro, murmuram: Coitadinho...Gargarito levanta-se e é logo amparado por algumas pessoas que o vêem na rua: Se calhar é um AVC. O meu tio teve uma trombose e caiu assim no chão. Ahh... já está a deitar sangue pela cabeça. Gargarito quer falar mas a tosse não o deixa. Está nervoso. Sente calafrios e tem uma ideia fixa: fugir. Atravessa a rua Augusta com o sinal vermelho e um carro atropela-o, deixando-o estropiado e sem vida. Os colegas correm e rodeiam-no, e dona Amélia diz: Isto é que é... mesmo às portas da morte, veio trabalhar. Ao que dona Isidora replica, compassivamente: mais vale assim, coitadinho, que morrendo comido por dentro... Foi uma santa morte. Uma senhora idosa aproximou-se e perguntou: As senhoras conheciam-no. Sim, era nosso colega. O que é que aconteceu? E dona Odete, com um ar compungido: Ele, coitadinho, estava com um cancro no pulmão proveniente de uma tuberculose mal curada, coitadinho, e ia agora para Oncologia. Mas eu vi logo nos olhos dele, coitadinho, na altura nem quis dizer nada, mas ele ia desesperado. Devia andar cheio de dores, coitadinho ... e olhe, decidiu acabar com tudo. Talvez tenha sido melhor assim. Coitadinho.
A pedido dos vizinhos e colegas do senhor Gargarito, não houve velório e o caixão foi logo fechado, à saída do hospital, pois temeu-se que houvesse perigo de contágio.
1 comentário:
ola ana maria
é um texto fabuloso muito bem escrito. parabéns.
beijinhos
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