O LIVRO E O DESTINO DAS CASAS
A história abriu o livro de todos os assombros
e desceu à rua para perguntar de que cor
é a luz que ilumina as praças, que incendeia as vozes.
Nunca esse livro se abrira assim, tão ousado e grave,
muito antes de se conhecer a palavra fim.
Este livro sobreviveu às labaredas de Alexandria,
aos holocaustos da palavra e do corpo,
ao terror dos meninos nas caves sem pão,
nos escombros do inferno da noite,
à fúria dos algozes e dos inquisidores,
às chamas vorazes de todos os autos-de-fé.
Por isso é um livro único como únicas são
as grandes palavras comovidas
que não sabemos usar quando queremos falar
do sono dos filhos, dos netos, de todos
aqueles que amamos por serem o conforto da alma
agora e na hora dos nossos medos.
O livro está aberto à nossa frente
mas apressa-se a avisar que não tem resposta
para nenhuma das perguntas
que, em sobressalto, nos queimam a boca.
É um livro autêntico e límpido
como as águas dos rios que correm em nós.
É um livro valente e sábio. É um livro feito
à medida dos mapas onde a história se escreve,
mas nada sabe sobre o que está para vir.
É somente um livro aberto,
com pétalas, conchas e lágrimas de chuva,
com o ladrar nocturno dos cães
enrodilhados de frio na soleira das portas.
E é então que a mão vira a página
e pousa numa frase intrigante,
num verso de métrica esquiva,
pedindo à história, sem timbre de súplica:
“Deixa-me falar por ti na hora
em que a serenidade voltar às nossas casas”
José Jorge Letria
Sem comentários:
Enviar um comentário