segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Eu, consum(o)idora




De bibe branco descia as escadas a quatro e quatro e repidamente me encontrava na rua. Adorava fazer recados, e ali, no meu bairro, num perímetro de 150 metros, eu tinha quase todas as lojas de especialidades. Ao lado do meu prédio, a mercearia do Sr. Nicolau, mulher e duas sobrinhas que eles criaram desde pequenas. A azáfama era grande e as conversas sem fim acompanhavam as compras. O grão, o feijão e cereais diversos estavam à mostra nuns grandes caixotes de tom ocre, que faziam conjunto com os restantes armários agarrados às paredes. O açúcar e a farinha eram metidos dentro de uns cartuchos acizentados e o azeite tirado de uma máquina marcada com as medidas era deitado para uma garrafa que as compradoras traziam de casa. E aquela manivela subia e descia, e os meus olhos acompanhavam esses movimentos. Os legumes e a fruta estavam a monte num balcão de mármore, e os preços discutiam-se sempre, num ritual quotidiano, quase como uma obrigação. As postas de bacalhau demolhadas vendiam-se uma a uma e a salsa era de graça. Às vezes o homem da carroça fazia concorrência, mas enganava com a balança manual, segundo a opinião do Sr. Nicolau.
Na esquina, a leitaria da D. América, baixinha e gorda, e do seu marido, o Sr. Lopes , alto, moreno, oriundo das Beiras. Aí a manteiga era tirada com uma espátula de madeira e embrulhada em papel do mesmo nome do produto. Mas não era a manteiga a origem das minhas atenções: os biscoitos caseiros, os queques, os pastéis de bacalhau e mais tarde os rissóis e os croquetes faziam-me crescer água na boca. A Dona América deitava-se tarde a fazer estas delícias e queixava-se de dia enquanto aviava os clientes.
A leitaria tinha só uma mesa, e esta servia para o Sr. Lopes almoçar, os petiscos que tinha dentro de uma marmita mitigavam-lhe o esforço dispendido pela manhã de trabalho. Mais abaixo existia o Sr. Augusto, droguista. Andava sempre de bata branca e coxeava de uma perna. A drogaria tinha armários todos azuis escuros. Comprávamos ao litro lexívia, petróleo, álcool puro, álcool para queimar, mas também barras de sabão, solarine, cloreto e carteirinhas de papel que se queimavam em casa depois das limpezas. Num armário do canto, o Sr. Augusto ainda vendia cadernos, lápis, borrachas, lápis de côr e ardósias. Nunca esquecerei o cheiro forte desta casa.
Em frente, duas irmãs solteiras, Amélia e Adelaide, eram donas de uma capelista, loja de tecidos e retrosaria. O meu maior divertimento era vê-las discutir constantemente por causa da falta de carros de linhas que uma delas deixava acabar sem avisar. Comprávamos colchetes, molas, elásticos, botões e fita de nastro. Algumas vezes, mandávamos lá as meias para as malhas serem apanhadas.
A minha mãe telefonava de manhã para o talho e para a peixaria, a fazer as encomendas, exigindo sempre a frescura do produto. O empregado do talho chegava depois com um grande embrulho, ou então ela própria se deslocava à loja para escolher a carne. As grandes facas cortavam mágicamente os bifes, as costeletas e o entrecosto, e na peixaria entre o arrancar das guelras de um cachucho, a Srª. Delfina falava mal da nora.
O pão, o jornal e o leite eram vendidos à porta. O pão por vezes vinha quente, o leite era avulso, dentro de umas bilhas de lata, e medido a púcaros. Ao sábado o recebimento do jornal era mais excitante porque saía «O Século Ilustrado» e o tão desejado suplemento infantil «Cavaleiro Andante».
A carvoaria vendia várias qualidades de carvão, mas este lugar metia-me medo porque desde o empregado ao produto tudo era negro de sujidade.
As tabernas eram muitas, e os operários aqueciam as suas refeições ou comiam toucinho frito com um naco de pão. Estes lugares eram geralmente fornecedores de vinho antes de este ser engarrafado. Nunca me deixaram entrar na taberna, era uma determinação do meu pai, que considerava um lugar interdito às mulheres e aos jovens.
O sapateiro arranjava os meus sapatos com atacadores, punha capas nos sapatos de salto alto da minha mãe e engraxava duas vezes por semana os sapatos do meu pai.
A farmácia era um puco mais longe, e só a visitávamos quando a doença nos batia à porta e aí os tratamentos eram monótonos: clisteres, algodão iodado no peito, chá de limão com mel à noite, e muitos cobertores de papa na cama de modo a provocar uma violenta sudação. Se a febre era alta, punham-se toalhas húmidas na testa. Eu gostava muito de estar doente, porque nessa altura a minha mãe deixava-me tomar chá com torradas e não me obrigava a comer a sopa; só não percebi porque é que a minha mãe pôs um papel vermelho na lâmpada do meu quarto quando tive sarampo. A farmácia vendia também perfumes, em pequenas ou grandes quantidades, cremes de beleza para todos os fins, pó-de-arroz e caixinhas de rouge.
Estava eu alheada do espaço onde me encontrava, deleitando-me com estas memórias quando de repente alguém me puxou para trás, pois ia sendo atropelada por um carro-grua que buzinava furiosamente. Percebi então que carregava centenas de litros de leite empacotado para as prateleiras do hiper-mercado, que estavam a ficar vazias, e o pânico das donas de casa pela falta deste produto quase fazia tremer as paredes pré-fabricadas do monstruoso edifício. À saída lembrei com saudades aqueles rebuçados de alteia e mel que eu comprava com uma moedinha de tostão. O meu filho mais novo sacudiu-me e pediu-me um chocolate e eu, perfeitamente «normalizada», voltei atrás e paguei-o com o cartão multibanco.
Já não me sinto freguesa personalizada, mas sim massa consumidora de produtos cujos invólucros em muitos casos não são biodegradáveis. O plástico, minhas amigas e meus amigos.

Anad




Este meu texto foi publicado no catálogo «CAZAS DE COMMÉRCIO - LOJAS ANTIGAS DE SETÚBAL», em 1991, no Museu do Trabalho Michel Giacometti.










1 comentário:

gaivota disse...

é verdade, minha amiga, outros tempos... o comércio e a qualidade de outrora, principalmente em meios mais pequenos!
hoje... haja cartão, plástico!
e há tantos produtos que me "custam" imenso ter que comprar nas grandes superfícies... continuo consumidora de "hortas"!
beijinhos