domingo, 20 de abril de 2008

CENA I

Era um dia de festa quando a alcofa com os frascos saíam de cima do armário da cozinha. De tamanhos e cores muito variados, estendiam-se no chão de quadrados vermelhos e brancos. Memória dos frascos e do que eles representavam. Um dia diferente. Só hoje ela associou esses objectos transparentes ao gosto pelas cores azul e branca. Talvez duas ou três vezes por ano, esse dia era realmente diferente. O toque da campainha do despertador acordou-a desta longínqua memória. Um dia fora do habitual é um dia com uma alcofa cheia de frascos? Porque não! Decidida levantou-se e entrou na casa de banho enquanto ligava a televisão para ouvir as notícias da manhã.
Os azuis para um lado e os brancos para o outro ou então em círculos, em pirâmedes, deitados ou a rebolar. Ela lembrou-se de um pormenor quando entrou para a banheira, havia um verde, escuro, com uma tampa em forma de coroa e era sempre escolhido para rei. A rainha era branca de vidro martelado, sem tampa. Porque é que escolhia sempre aquele frasco para acasalar com o verde? Uma rainha sem cabeça? Que memória nebulosa. Encheu a banheira e deitou-se na água tépida, fechou os olhos e recordou a lavagem dos frascos, noutra banheira, com pés altos, forrada a esmalte. O barulho que eles faziam, frascos para um lado etiquetas para outro e o chão inundado de água e uma figura gigante a entrar pela minúscula casa de banho a gritar. O telemóvel tocou estridente e ela levantou-se rapidamente.
Ah, és tu, desculpa estou atrasada. Estou pronta dentro de vinte minutos. Correu para a cozinha e encheu a cafeteira eléctrica de água. Ligou-a e correu para a casa de banho. Pegou no secador e começou a moldar com os dedos o cabelo fino. Num segundo os fusíveis dispararam - que maçada, pensou. Tenho que aumentar a amperagem. Colocou água quente no bule onde já se encontrava um saquinho de chá verde - é muito bom para o coração, tinha-lhe dito a empregada da farmácia. De repente viu que estava nua. Dirigiu-se ao quarto e começou a vestir-se. Olhou para o espelho e viu a figura gigante a gesticular e os frascos a serem arrumados sem ordem e a coroa do rei a estilhaçar-se no chão. Agora eram os dois sem cabeça, arrumados no alto do armário da cozinha, dentro da alcofa, alcofa ou cesta feita de cana? Não se lembrava, mas tinha na memória o cesto lá em cima, com o rei e a rainha e os outros todos lavados, azuis e brancos. Olhou para o espelho e começou a pintar-se. Tinha olheiras e tentava disfarçar. Sorriu quando olhou para a gaveta das pinturas: lápis azul e sombra azul em maioria no meio das outras cores. Bebeu o chá a correr e tomou os comprimidos para a alergia. Era Abril e a rinite começava a dar sinais de vida. Meteu-se no elevador e o telemóvel começou novamente a tocar - estou a descer. Entrou no carro e deitou a cabeça para trás. Como gostava de não pensar - Há metafisica em não pensar em nada, escreveu Alberto Caeiro, mas ela não conseguia - estás esquisita hoje, disse-lhe o companheiro - não, só que não dormi muito bem. Hoje depois de sair vou cortar o cabelo, deixas-me na Avenida - outra vez, perguntou ele admirado, não foste lá na terça-feira? Sim, quero cortar mais a franja.O salão estava cheio mas ela não se importou, o seu olhar dirigiu-se para as vitrinas cheias de objectos de vidro. Taças, jarras, garrafas, copos de várias cores. Era o único salão que tinha em exposição tantos objectos de vidro. Olhou para eles e achou que estavam apertados. Sentiu alguma angústia, os outros amontoados e sozinhos na cesta ou seria na alcofa? Desviou o olhar para a janela, o sol batia nas árvores da Avenida, ao lado discutia-se os cartoons dinamarqueses, o respeito pela religião de cada um ou a liberdade de expressão. Uma petição ia ser entregue no dia 16 de Fevereiro, na Assembleia da República. O que é que ela ia fazer? Iria tomar posição? Estava tão amorfa desde que saiu da outra cidade...

1 comentário:

Um Momento disse...

UI...
Baralhei-me toda ao "viver" este texto...
Este dia deve ter sido realmente complicado....
E lá foi o rei fazer companhia á rainha... sem cabeça...
mas terá sido no banho... no quarto...na cesta ou na alcofa... ai, ou terá sido entre aqueles vidros "apertados" na montra do cabeleireiro:)))))))

( vivi a confusão e até tomei chá verde, a sorte é que eu estava vestida :))))) )

Beijinho!

(*)