terça-feira, 22 de abril de 2008

CENA IV

Penso que está na altura de eu voltar, como é que tudo vai por aí? Hum, hum, como sempre claro, mas já percebeste em que país estamos? Bom, vou desligar, diz a todos que chego a quinze, estou farta de estar em casa. Se não te importares, agradeço, às oito e vinte, oito e vinte cinco, adeus, adeus. Vou voltar a trabalhar, sou funcionária pública, aquela classe maldita que é o bode expiatório da crise financeira em que Portugal vive. Maria, Maria, gritou enfastiada, traga-me um chá. A partir do dia quinze, não precisa de ficar cá a dormir, vou voltar ao serviço. Veja lá se a senhora ainda não está bem, não é só da perna, dos nervos..., mas que nervos mulher, preocupe-se com a sua vida, retorquiu desabrida, porque é que ela a irritava tanto, porque é que não tinha tolerância com as suas limitações, era o fingimento, o instinto de sobrevivência que faz com que as pessoas rastejem verdes de encoberta raiva. Ela odiar-me-à? Nunca saberei. Chora tão rápida como uma torneira, quando me declara o seu amor. A minha afilhada Margarida, também não gosta dela, embirra com a maneira como ela arruma os talheres, parece que os deita para a vala comum, tudo ao rebolão, diz-me em tom de crítica. Tão perfeccionista que é a Gui, dela gosto, são tão poucas as pessoas de quem eu gosto. Aqui está o chá minha senhora, ponha aí disse ela e sorriu.
Já estou pronta para outra, não me perguntem nada, caí e pronto a história acabou.Continua azeda como sempre, comentaram entre si as colegas. Tem é de arranjar um homem. Elas estão a pensar que eu estou mal disposta como todos os dias e certamente é por não ter um homem, porque é que a tristeza de uma mulher de forma persistente é sempre encarada como falta de homem. Olham para mim e dizem, coitada não tem ninguém. O que sabem elas da minha vida. Um homem será tudo? Drª. Isolda ainda bem que chegou, já está em forma? Olá Dr., já estou bem , obrigada. Óptimo, óptimo, já fazia cá falta. Mentiroso, pensou, o que querias é que eu não voltasse, porque é que eu estou rodeada de mediocres, porque é que não me sinto bem em lado nenhum? Empatia, porque é que eu não tenho empatia com a maior parte das pessoas, serei normal? terei que fazer análise como o Woody Allen permanentemente, descobrir as profundezas do lago, Freud chegou ao método psicanalítico propriamente dito, e passou a orientar a seus pacientes que falassem sobre qualquer coisa que lhes viesse à mente, mesmo que pudesse parecer sem importância, sem relação com seus problemas, ou que fossem reprováveis. Os frascos, essa recordação levou-me a uma casa. Não quero pensar mais nisso. Hoje tem de ser um novo dia. Discou um número, Miguel sempre queres fazer Yoga? Então quantas vezes por semana, natação? talvez, Yoga e natação, três vezes por semana. OK, vamos combinar. Começamos amanhã, hoje, pronto está bem, seja. Vamos a seguir ao emprego. O Miguel era bom amigo, era um homosexual assumido, sem preconceitos nem peias, gosto de amigos assim, posso falar com eles de tudo, o que devo vestir, que perfume comprar, sobre o período pré-mestrual, quando o tinha, é verdade já passei a menopausa. Que arrepio. Drª. Isolda quer um cafézinho, não obrigada, não bebo café. O telemóvel toca estridente, Isolda olha o número no visor e resolve atender, Margarida, querida, vens saber notícias da madrinha? Estou bem, muito bem. Olha queres ir qualquer dia a um cinemazinho, o último do Woody Allen acho que é diferente de tudo, está bem, quando tu puderes. Beijinhos, adeus. Vamos então ao relatório, vamos perder sete horas de vida neste gabinete.
Mais do que o amor o importante é o conhecimento, sentes-te viva se conheces o mundo que te rodeia e se vives nem que seja por um bocado a dor do outro. Conheceres outras pessoas interagir com elas por momentos, por dias ou talvez por mais tempo é uma forma de amor. Ela sempre procurou outras formas de amor e se não as encontrava na altura que mais precisava, recriava-as de uma maneira natural. O alimento interior é tão importante como o pão que se come diariamente e ela sempre se alimentou de outras coisas, verdades ou efabulações, o importante mesmo era não parar, nem ceder. As angústias, o passado nas suas partes mais lunares não podiam sedimentar-se no corpo. Perdoar é o acto de mais pura libertação e afecto. Não confie na pessoa, mas confie nos ensinamentos/Não confie nas palavras, mas confie no significado, disse o Budda. Budismo ou Cristianismo. Ambas as religiões se encontram no sofrimento, na compreensão do sofrimento para dele tirar virtudes. Estás muito mística disse-lhe Miguel, sorrindo, tenho pensado na minha intolerância ultimamente, respondeu-lhe Isolda com voz calma, tenho de me concentrar mais no presente e afastar-me das feridas do passado, o que tiver que acontecer acontecerá «et voilá», disse dando uma gargalhada. Fez-te bem teres partido a perna, sim sem dúvida, respondeu alegre, mas também deu para analisar os meus bloqueios. É da crise, disse Miguel, a crise bloqueia-nos, olha eu tenho o cartão de crédito bloqueado, riram-se os dois e nesse momento sentiu-se feliz. Decidiu então assinalar num dos seus caderninhos, hoje tive um momento fugaz de felicidade.

1 comentário:

Um Momento disse...

E eu concordo com o "Miguel"...
Valeu mesmo a pena a Drª Isolda partir a perna...como não vale a pena confiar nas palavras mas sim no seu significado digo:"Há males que vêm por bem"!
:)))))))))))

(*)