quarta-feira, 23 de abril de 2008

CENA V

A mulher sentada no banco do barco que atravessa o Tejo, com os quatro filhos ainda crianças. Olha para a outra margem, mas não olha, as crianças puxam-lhe pelos braços e chamam por ela e a mulher não olha nem diz nada. Isolda reparou nessa mulher ainda nova e sentiu alguma ligação com ela, o olhar que não olha, os ouvidos que não escutam os gritos dos filhos. Mãe, ó mãe, olha para mim. Deixem-me por favor disse com um ar displiscente. Ela ama-os, certamente que os ama, mas não está ali, está desatenta ao óbvio. O barco parou e aquele olhar cavado volta à realidade. Dá a mão à tua irmã, não se afastem de mim. Ó mãe eu queria um gelado. Isolda lembra-se de dizer à mãe, ó mãe, mãe, eu queria um sorvete. Como as palavras mudam, e a minha mãe, hoje não há sorvetes. Só aos domingos. Mãe vamos fazer de conta que hoje é domingo.O sol bate em cheio na Praça do Comércio, as pessoas passam a correr e no meio delas a mulher com os quatro filhos. Os filhos puxam-na para o quiosque dos gelados e ela vai, com o ar ausente compra quatro cornetos de morango. Cones de baunilha com duas bolas de nata e morango. Isolda atravessa a rua e perde de vista a mulher. Se eu encontrasse agora alguém que me dissesse, quer ir comer um gelado comigo? Atravessa o arco de triunfo e caminha apressada para a Praça da Figueira, a Margarida já deve estar à espera de mim,pensou. Tira o telemóvel da mala e marca o número. Gui, vou apanhar um táxi no Rossio, querida, não demoro a chegar, hoje tive uma reunião no exterior, vai comprando os bilhetes. Sente um suspiro enfastiado, também tu Margarida, a afilhada querida, também tu.
O filme é surpreendente, não parece nada com o que o Woody Allen habitualmente faz, disse Isolda com uma voz entusiasmada. Tens toda a razão tia, as mortes com aquela dose de premeditação são inesperadas, respondeu Margarida. Acho que ele agora está a fazer um filme em Barcelona, parece-me que não tem grande êxito nos Estados Unidos. Ó tia com aquelas broncas com a Mia Farrow. Vamos comer qualquer coisa? Queres ir aos cozidos a vapor? Já sentadas no restaurante, Isolda observou a sua afilhada, tão bonita que ela era, tão eficiente como gestora de um moderno SPA em Lisboa, tão diferente da sua irmã. Ela sim , poderia ter sido sua filha. Tinham tanto em comum.Tia, está ali um colega meu, um mestre de Tai-Chi, disse acenando para um homem grisalho, de porte atlético. Num segundo ele estava junto delas, olhando-as com um ar sereno. Esta é aminha tia e madrinha, Isolda Freire. Ele estendeu a mão e disse sorrindo, Jorge Vagino, muito prazer. Isolda num primeiro momento engoliu em seco, mas não aguentando mais, desatou a rir convulsivamente. A cena era hilariante. O homem com a mão estendida, a sobrinha estupefacta e a tia a rir sem conseguir parar, como naquela cena do Leopardo, quando a Cláudia Cardinale, no papel de Angélica, noiva de Tancredi, se ri sem parar no fim do jantar, em casa do principe de Salina após ouvir uma anedota sobre freiras.Tia, sussurrou Margarida, estás a ser inconveniente. Isolda tomou consciência do que estava a acontecer, muita gente do restaurante olhava para ela. Levantou-se rapidamente e disse, desculpem vou ao toilette.
Não chores filha, já sabes como ela é, disse-lhe Teresa fazendo-lhe uma festa na cabeça. Ó mãe mas foi uma vergonha para mim, ele é meu colega de trabalho, como é que eu o vou encarar amanhã? De uma forma muito simples, dizes que a tua tia anda em tratamento, partiu uma perna há pouco tempo e ainda está com stress. Margarida tinha os olhos marejados de água e tremia-lhe o beicinho quando falava. Ela às vezes não respeita ninguém. Não respeita nada nem ninguém, acrescentou a progenitora assertiva, ela é uma mulher centrada nela, só se vê a ela. Já reparaste que quando nos telefona só fala dela, nem sequer pergunta como estamos, ou então é para dizer mal de toda a gente, aquela minha irmã não gosta de ninguém. Não é verdade, eu sei que ela gosta de mim, respondeu Gui mimalha. Sim, mas mesmo isso é para competir comigo, mas tu gostas mais da mãe do que dela, não é filha? Margarida olhou para os olhos de boga da Teresa e hesitou, mas de imediato abraçou-a e disse, ó mãezinha claro que é de ti que eu gosto mais e agora vou levar imenso tempo a voltar a encontrar-me com ela.Teresa abraçada à filha sorriu.
Ah, ah, isso tem mesmo muita graça,disse Miguel rindo com satisfação. Talvez tenha, mas o que é certo é que a Margarida ficou a odiar-me, respondeu Isolda triste. Não te preocupes, está zangada hoje, bem disposta amanhã, não te martirizes, não te vitimizes, retorquiu o amigo. Bom, bom, já pareces a minha família a falar, vou mas é trabalhar porque tenho uma reunião logo à tarde, respondeu Isolda, dando por finda a conversa. Antes de me ir embora queria fazer-te uma proposta. Indecente, perguntou a amiga com voz maliciosa. Já sabes que não, porque a minha religião não me permite. Ora, ora, diz lá o que tens a dizer e despacha-te. Queres ir comigo à Noruega para o mês que vem? Noruega, mas que ideia, fazer o quê? O meu sobrinho vai dançar na Ópera de Oslo e eu prometi-lhe que o ia ver, então agrada-te? Pensando bem é uma boa ideia, para o mês que vem não é? Não digo nada a ninguém e vou. Tenho é que pedir uma semana de férias. Olha que até é uma boa ideia, nunca viajei contigo nem conheço o teu sobrinho, mas dança clássica não é o meu forte, concluiu Isolda. Isso não tem importância, o mais importante é sairmos daqui, este país está doente e nós não podemos ficar contaminados. Olha lembrei-me de uma coisa, disse Miguel com ar misterioso. E se convidássemos o Vagino para ir connosco? Isolda gritando atirou-lhe uma borracha à cara.

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