quarta-feira, 23 de abril de 2008

CENA VI - ÚLTIMA CENA

Teresa esperava ansiosa o marido no hall da Gulbenkian. Estava nervosa, o concerto começava às sete e ele chegava atrasado como sempre. Olhou em volta, aquelas pessoas eram as mesmas dos anos sesssenta, só que com mais quarenta anos em cima. Cumprimentam-se com um beijo, só um e vestem da mesma maneira. Fato saia e casaco, blusas de seda, casaco de peles ou estolas ainda empoeiradas pela naftalina. As mulheres são todas louras aos sessenta anos, particularmente as desta classe social, concluiu Teresa. Pensativa, sussurrou ao seu ouvido Marcelo. Marcelo, disse com voz zangada, chegas sempre em cima da hora e eu detesto esperar. Não me aborreças querida logo hoje que foi um dia em cheio. Está bem, respondeu Teresa condescendente, vamos entrar. A sala compunha-se, as peles brilhavam na plateia. Marcelo, gostavas que eu fosse loura? perguntou com voz baixinha. Hum, hum até gostava, respondeu o marido distraído olhando para uma jovem de calças justas acompanhante da avó que de bengala em riste apontava os lugares, é ali Mafalda, o seu avô é um teimoso e agora não sei onde é que ele está. Esta gente cheira a passado. Já viste a média de idades que está nesta sala? O marido não deu continuidade à conversa porque estava mais interessado a conferir as mensagens do telemóvel. O que ele me irrita quando não dá resposta, pensou Teresa, desliga o telefone Marcelo o concerto vai começar, disse-lhe com voz azeda.As luzes apagaram-se e o concertista de casaca polida entrou. O concerto começa com Bach, nos intervalos entre partituras uma outra música ecoa de forma intensa na sala, a tosse. Muito tossem estes velhos, disse Teresa para o marido com voz baixa, por isso é que são velhos, respondeu-lhe com ar irónico a cara metade. Schhhhh, schhh, ouvia-se na plateia cada vez que a tosse irrompia. Os velhos sossegaram e outros barulhos começavam lentos, muito lentos, eram os dos rebuçados a serem tirados do papel. Teresa encostou-se e concentrou-se na música fechando os olhos, agora era Mozart, como ela gostava de Mozart. A Isolda podia vir com eles, mas não, ela nunca queria sair com eles. De repente abriu os olhos sobressaltada, um peso caia-lhe para cima do ombro esquerdo, era a cabeça de Marcelo a dormir. Pisou-lhe o pé danada e ele disse um ai dorido e logo se ouviram schhs e mais schss, olhou em volta como a pedir desculpa e viu metade da plateia a dormir, um quarto a tossir e a comer rebuçados e pensou. Que concerto, menina, que concerto.
Isolda subiu as escadas do CCB devagar, era sábado e chovia torrencialmente. Debaixo do chapéu de chuva ganho com a compra da revista Máxima prepara-se para ver a exposição, de repente vê ao longe Marcelo a sair da porta do edifício. Vem acompanhado, murmura surpreendida, a jovem que caminha junto ao seu cunhado tem a idade da sobrinha. Olá Marcelo por aqui? pergunta-lhe com voz irónica. Marcelo pára surpreendido e balbucia algumas justificações. Sim, viemos para uma reunião extraordinária aqui perto, como terminou muito tarde resolvemos almoçar e a Rita sugeriu que fossemos ver a exposição da Frida. Muito prazer, Isolda Freire, disse estendendo a mão para a jovem acompanhante do cunhado, a exposição é boa? Rita Espadeiro, muito prazer em conhecê-la, o Marcelo já me tinha falado de si, partiu uma perna há pouco tempo, não foi? Não sabia que te preocupavas tanto comigo, disse Isolda sem responder à pergunta de Rita. Bom, atalhou o homem atrapalhado, a exposição é pequena, muito pequena, e é quanto a mim mais uma biografia da Frida Khalo do que uma exposição da obra dela, o filme é bom, tem boa informação, mas está lá um dos meus quadros preferidos, a coluna partida...muito bem disse Isolda, a seguir vou ao Museu do Chiado ver os fauves. Já vimos repetiram os dois ao mesmo tempo, hum, disse a cunhada olhando-o nos olhos, e que tal? Já vi melhor, mas tem com a excepção de Matisse alguns pintores de segunda linha muito interessantes, com influências claro, retorquiu Rita com uma voz bastante excitada. É pena que a Teresa não possa vir, retorquiu Isolda, dirigindo-se a Marcelo. Ela tem estado adoentada, com gripe, é alérgica como tu sabes, respondeu irritado. Sim, sim, bom adeus, prazer em conhecê-la, disse Isolda afastando-se num rompante. Entrou e sentou-se um bocado aguardando que a fila diminuisse, mas porque é que eu fiquei irritada, cogita abstraindo-se de tudo ao seu redor. Quero lá saber que ele ande a dar umas voltas com esta miúda. A minha irmã que se cuide e trate da sua vida. Rivera e Frida, Frida e Rivera, casados por duas vezes, a fidelidade é uma utopia? Fui criada na ideia de que o amor era para sempre e o casamento idem, idem, aspas, aspas e tanto desgaste sofri com estas premissas absurdas. O importante é a construção de qualquer coisa que se pode chamar a dois, encorpar a tolerância e aceitar o outro como ele é. Que bonito, que utópico, mas se a Frida conseguiu, com outras amizades pelo meio, a monopolização do amor e do outro é um caminho perigoso. Frida, como tu regeitaste a comiseração, como tu enfrentaste a vida com talas de madeira e corpetes de tiras duras. Sinto-me tão só e tão melancólica, sinto-me sempre tão só e melancólica. Tenho de iniciar outra corrida. Olá Iso, estamos a encontrar-nos muitas vezes. Levantou os olhos e o João estava sorridente na sua frente, abraçado a uma menina, esta é a Mariana a minha filha, vamos ver a Frida Khalo, já viste? Isolda esconde o bilhete no bolso e responde eufórica, cheguei mesmo agora, vamos.Tenho estado a pensar numa coisa, disse Isolda com voz doce para João. Em mim, perguntou João com ar sedutor. Ora, riu-se Isolda, em ti penso em toda a hora, respondeu muito depressa aproximando a sua cara da dele. Então o que é? Estamos aqui na Cornucópia, a ver a Gaivota, os dois primeiros actos já terminaram, aguardamos o terceiro e não há tosse. Tosse, perguntou espantado. Sim, eu explico, disse misteriosa. As pessoas que vêm às estreias do teatro do Bairro Alto são tal como na Gulbenkian públicos habituais de há trinta anos, mas estes não tossem qundo fecha o pano e os outros, os da Gulbenkian fazem-no sistematicamente entre os intervalos de dois andamentos. João ficou a cogitar e respondeu triunfante. Fazem frete. Frete, perguntou Isolda admirada. Sim Iso, os da Gulbenkian são na maioria burgueses de direita que vêm por status, encontrar amigos, picar o ponto se assim se pode dizer, mas o frete para alguns é grande. São diabéticos, sofrem de reumático...oh João que análise, respondeu Isolda Rindo. Aqui, continuou João são os militantes de esquerda, os habitués que gostam mesmo, estão concentrados, não pensam na doença enquanto estão aqui. Olha para os fatos, não vês peles, nem jóias em demasia, mas sim os cachecóis, alguns palestinianos, estás a ver a diferença. Nunca tinha pensado nisso. Comigo vais pensar muita coisa. Isolda sorriu e deu-lhe a mão. Então quer dizer que Marx se fosse vivo vinha à Cornucópia e não à Gulbenkian? Bom, se gostasse muito de música clássica ia mascarado. Ah, ah, de quê? De Kant, respondeu João com grandes gargalhadas.

2 comentários:

Um Momento disse...

Anad... Muitissimos Parabéns!
Foi uma delicia ler estes textos!
Tens uma capacidade incrivel e ritmada de nos transportar de um lado para o outro... de "mudar" os personagens de uma forma fantástica ,e não se perder o "fio á meada"!
Muito sinceramente... ADOREI!
E agora que a DRªIsolda já sorri, recuperada da sua queda, ao lado de João, e ja não está tão irritada com o Marcelo por causa da sua irmã Teresa ( ou antes da Raquel) ,o meu muito obrigado a ti por estes textos fantásticos!!!!
Sem tosse, muito sorridente aplaudo eu de pé e na primeira fila ANAD!!!!

Beijo Grande!!!!!!!!!!

(*)

golden disse...

nota-se que conheces bem a gulbenkian dos anos sessenta e não só. és portanto cota.