terça-feira, 22 de abril de 2008

CENA III

Que queda, menina, que queda, disse a irmã com um ar tristonho. Vinha-te convidar para ires passar connosco o fim de semana, mas assim. Claro que não vinha nada com a ideia de fazer o convite,pensou a sinistrada, estas coisas por vezes são ditas quando alguém não pode ir e aquela ou aquele que a convida não o quer convidar. Isolda olhou-a impávida. Não dizes nada, inquiriu Teresa com a voz já esganiçada. Eu estou preocupada contigo, como é que te vais arranjar sózinha? A Maria fica cá. A Maria? E a família dela? Então, pago-lhe e pronto.Vou a Berlim para a próxima semana, o Marcelo tem uma reunião e eu vou com ele, acho que..., tens que levar uma dúzia de dicionários, és um zero em linguas. Obrigada, minha querida, obrigada pelas palavras amáveis, nem sei porque é que venho visitar-te? Berlim, vou dizer ao João que afinal quero ir a Berlim, já fui tantas vezes a Londres, íamos ver a Maria Stuart do Schiller, ficávamos depois a conversar na Postdamen Platz, num qualquer café.Isolda, estás-me a ouvir?
E eu que não queria, nunca quis ter esta família. Ficamos agarrados como cracas numa rocha e não nos podemos separar. Estás a ouvir ou não, Isolda? Olha que eu vou-me embora. Minha senhora, telefone para si, disse Maria solicita. Oh mulher, como é que quer que ela vá ao telefone? Diga que ela não pode deslocar-se. Está bem minha senhora. Fechou a porta. Que burra que é esta mulher.A porta de novo a fechar-se e a madre superiora, no seu gabinete, muito lavada, demasiado lavada. Tinha um tronco de árvore ao pé da janela. Da Catalunha, do lugar onde o meu irmão tombou, morto pelos comunistas. Os olhos azuis, não , talvez cinzentos, cortantes como o aço. Já não tens pernas para usar meias pelo joelho, amanhã vens de meias altas, assim como Deus quer.Vou ouvir música, muita música e vou ler, vou ler o Kafka, Franz Kafka, a Metamorfose, já estou enjoada do Saramago. Vou pedir à Maria que me traga muitos filmes, vou fazer uma lista. Vou ver os filmes do Visconti. Começo pelo Leopardo. "Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude".
O que é a solidão? É um estado interior, devastador e de continuidade persistente. Como vencer a solidão, ou melhor, como travar uma batalha com êxito, com uma única pessoa, que somos «nós», eu e mais eu. Aprender a viver só, no meio de muita gente é como aprender a ser pobre, no meio do consumo e da riqueza. Quero ser pobre e só, com uma certa qualidade de vida. Riu-se. Qualidade de vida para a solidão e pobreza. Maria, Maria, chegue aqui. A mulher semi descabelada, aproximou-se. A partir de hoje só vou comer pratos vegetarianos. Como é que come isso? perguntou medrosa, a sombra entre portas, só vegetais, arroz, fruta, algas e outras coisas mais. Eu digo-lhe onde comprar, e traga-me da loja da Avenida, aquela do artesanato indiano, uma shiva. Tem que me dar dinheiro, respondeu a mulher, desaparecendo desalentada.Shiva dança dentro de um círculo de fogo, símbolo da renovação e, através de sua dança, Nataraja cria, conserva e destrói o universo. Vou fazer yoga, depois da perna estar boa, vou fazer yoga. Afinal estou a fazer projectos, estou a dar uma volta à minha vida, suspirou contente.Não, Srª. D. Teresa, a doutora não me parece bem, comentava a sombra ao telefone. Pediu-me que eu lhe comprasse coisas muito esquisitas. Tenho que defumar a casa, eu sei quais são as ervas, sim, sim. Eu trago de Corroios, há lá muita loja brasileira. A erva da Guiné também é muito boa.
Tem que fazer um esforço maior, disse-lhe a técnica de fisioterapia com um sorriso aberto. Ai como dói, quando é que estarei livre desta batalha? As lágrimas teimavam em cair e a perna de repente levantou-se quase praticamente sem ajuda, muito bem, continue. Tenho de ir a um Instituto tirar esta celulite. Vou fazer uma lipoaspiração, peço para me retirarem esta gordura do organismo que se depositou nas células, tanta coisa que eu quero fazer e não faço nada, primeiro tenho de voltar ao emprego. Vou telefonar ao Miguel, ele tem sido simpático, todos os dias me dá um toque ou me manda uma mensagem. Parti a perna por causa dos frascos. Que disparate, nunca mais me quero lembrar daquela alcofa.Ao fundo Maria segue atentamente os esforços de Isolda, eu tenho pena dela, pensa a empregada com um ar condescendente, sózinha naquela casa. Ela estará com pena de mim, não quero comiseração nenhuma, que maçada ter que recorrer a esta mulher, mas mais vale esta do que a Teresa e o príncipe consorte, o que eles têm de melhor é a filha, a minha afilhada. Tem sido querida, sempre a falar comigo pelo messenger.

2 comentários:

O Profeta disse...

Enebriante é ler-te...




Doce beijo

Um Momento disse...

E pensamentos invadem a mente em tudo querer...e falta de tempo?...ou tempo em falta para tudo fazer?...
E quando queremos fazer algo diferente... há que pensar nas "bruxas"... pois que as há ... há... ( pensaria a "sombra")...já os frascos... continuam lá... agora apenas na alcofa?...
( Fantástica a forma como estás a escrever estas "cenas")
:)))



(*)